MATO NAS INQUIRIÇÕES (IX)   Leave a comment

Inquirições de 1220 (8)

Mas, afinal – perguntava-se no final do post anterior – o que era um casal, em 1220?

Recorde-se que, na então freguesia de S. Lourenço de Arcelos (depois do Mato), pelas Inquirições de Afonso II, havia 6 casais que eram bens eclesiásticos: a Sé de Braga tinha 2, a igreja e/ou mosteiro de Calvelo e de Gaifar, respectivamente, 1 e  2,5, a ordem religioso-militar do Templo 0,5.

Este casal nada tem a ver com pares de animais, racionais e irracionais, que em certas alturas da vida se juntam, só por momentos ou para o resto da vida, com finalidades diversas, incluindo a de procriação. Também não é no sentido de aglomerado de casas, mais ou menos juntas. O casal deste post tem a ver com prédios e propriedades, seus proprietários e trabalhadores, seus moradores e intermediários.

Os dicionários dizem-nos que casal significa propriedade ou conjunto de propriedades rústicas de pequenas dimensões. E acrescentam que a expressão casal agrícola significa pequena herdade com casa de habitação, dependências e terrenos para exploração agrícola.

Com este significado, todos os habitantes de Mato têm o seu casal. Não há habitação que, à sua volta, não tenha um quintal ou eido, onde se produzem e colhem hortaliças e legumes, algum vinho e frutas, um pouco de milho e azeitona, para subsistência familiar e dos bichos domésticos (mais de capoeira e gaiola, agora, que de corte). Além disso, um ou outro cá tem a sua boucita, para lenha e mato. E se, para melhor passar o inverno, já não precisam da lenha, deixam crescer e engrossar os paus (pinheiros, eucaliptos, carvalhos, castanheiros), para com eles fazerem o bom negócio duma partida de madeira. A não ser que a desgraça dum incêndio leve tudo por água abaixo. Há, ainda, quem, além disto, tenha mais uns campitos ou leiritas, juntas ou dispersas, na terra ou fora dela. Mas, no Mato, hoje, ninguém chama casal ao conjunto dos seus haveres. Parece, aliás, que cedo os habitantes da freguesia deixaram morrer o significado de casal. Nas Inquirições de 1258, já só encontramos um expressamente designado como tal. E, na toponímia, ainda não encontrei vestígios. É possível que os 6 casais da então Arcelos fossem de reduzidas dimensões e com pouco valor económico-social. Estariam já em processo de parcelamento e, assim, deixado de ser casais propriamente ditos.

Agora o casal dos historiadores, sobretudo medievalistas. Todos consideram tratar-se de unidade agrária de exploração familiar, com origem no desmembramento das villas romanas. Que, depois, «se autonomizou e adquiriu estatuto próprio, passando a ser a unidade tipo de exploração campesina e, consequentemente, também a unidade fiscal, pois sobre ele e em função dele se cobravam os direitos devidos pelo camponês ao senhor da terra.» (1)

Não cabe, neste post, uma descrição, ainda que breve, da vila romana. Os interessados encontram-na no cap. VII de As Vilas do Norte de Portugal, de Alberto Sampaio. Sempre direi, todavia, que a villa dos Romanos (povo que conquistou e dominou imperialmente a Hispânia, recorde-se, entre 218 a. C. e 409), que esteve na origem dos casais, era a chamada villa rustica. Esta era uma parte da grande porpriedade fundiária (villa) que o seu proprietário (dominussenhor) retalhava em parcelas, para serem «agricultadas isoladamente por homens livres ou da classe serva, mediante a prestação de certa renda, com ou sem serviços pessoais.» Em cada uma dessas parcelas, havia as casae ou casulae, destinadas ao alojamento dos escravos, dos animais e outros cultivadores, bem como a fructaria, destinada ao armazenamento dos produtos agrícolas. A outra parte da villa, chamada urbana, era onde o senhor tinha a sua habitação, de residência habitual ou temporária, e onde se encontravam os terrenos que eram cultivados por «esquadras de servos», sob as ordens e vigilância do factorfeitor (2), antepassado, certamente, dos nossos medievais mordomos régios e senhoriais.

Os Romanos introduziram, cá, este sistema de exploração agrária com a romanização. Os Suevo-Visigodos (409 – 711) mantiveram-no e os Árabes (711- 1217) nem tempo nem condições tiveram para o alterar. Assim, nos séculos IX e X, a par das vilas rurais, existiam também as tais parcelas – casais – e outras herdades que, uma vez reconquistadas, os reis cristãos integravam no seu património (reguengos) e/ou distribuíam pelos nobres e clérigos (formando novas honras e coutos ou alargando as já existentes), como gratificação pelos serviços militares prestados, nas lutas contra os infiéis. Quando não eram os próprios nobres e clérigos, por iniciativa próprio, a apoderarem-se das propriedades reconquistadas e seus trabalhadores. Era a chamada presúria.

A. Evangelista Marques estudou os casais de Entre-Douro-e-Lima, em documentos dos anos 906 a 1220 e concluiu que, em geral, naqueles tempo e espaço, casal «designa predominantemente uma unidade familiar de povoamento e de exploração que articula, em torno de um núcleo habitacional, um conjunto de componentes produtivos muito variado (desde parcelas de cultivo até direitos de exploração de espaços incultos).» Esses casais situavam-se, preferencialmente, «a baixa altitude e nos vales dos rios», beneficiando, assim, «de terras fundas e irrigadas». A partir do séc. XII, porém, terá começado a sua «expansão para zonas de maior altitude.» (3)

O casal do séc. XIII não seria muito diferente destes. Especificando, um pouco mais, este tipo de propriedade, Iria Gonçalves diz-nos que o casal, além da casa de habitação, era constituído também pelos anexos: «adegas, lagares, celeiros, palheiros, cavalariças, currais, capoeiras»; terrenos agrícolas, «de extensão muito variável»: «terras de  semeadura, vinhas, olivais, pomares, hortas, ferragiais»; e «solos incultos, destinados a futuras arroteias ou a reservatório de matos para combustível e sobretudo para camas do gado, utilização que os transformaria em estrume.» O «local de habitação» era o elemento central na definição de casal. «Não importava, sequer, que se encontrasse desabitado». Se por acaso tivesse sido destruído, «as terras e ele ligadas podiam deixar de ser consideradas como um casal, ainda que, como topónimo, a lembrança da sua anterior condição fosse mantida.» Para voltar a haver casal, por isso, «era necessário ser reconstruída a casa». Acontecia, até, que «só após a edificação da morada do cultivador passaria a existir o casal.» (1)

Mas se, por um lado, havia casais desabitados, por outro, havia-os também ocupados por mais de uma família, se bem que com laços de parentesco próximo. E havia, ainda, casais constituídos por vários prédios. Um deles, porém, era o principal, chamado cabeçal ou cabecel. Neste caso, era sobre o lavrador que o habitava e explorava que incidia o maior peso, senão mesmo a totalidade, dos encargos e tributos. Casal passou a designar, com o tempo, o património de uma família. E aí nasceu, com certeza, a figura jurídica de cabeça de casal.

O casal medieval português era, pois, em síntese, uma unidade complexa de exploração familiar, constituído por casa de habitação e construções anexas, terrenos agrícolas e bravios, tudo mais ou menos junto ou disperso. Os seus proprietários eram, em regra, o rei, nobres e altos membros do clero. Alguns cavaleiros-vilãos possuíam também já o seu casal. Trabalhavam-nos, todavia, gente do Povo, por direito exclusivo – caseiros e jornaleiros – que não seriam, certamente, somente lavradores, mas também, conforme as necessidades e as ocasiões, ferreiros, carpinteiros, tanoeiros, criadores de gado, pastores, tecelões, etc. Mas todos e tudo sob a vigilância e a autoridade dos mordomos. Da acção destes fiscais régios, já se falou no post 17.º Actuaria de modo diferente o mordomo dos casais da nobreza e do clero? José Mattoso vê-o «omnipresente nos campos» e, ao descrevê-lo como «intermediário» entre os senhores e os caseiros, esclarece:

«É citado constantemente nas inquirições, nos prazos, nos processos das questões judiciais e ainda noutros actos. É a ele que se dá a pousadia e o jantar, que se promete servir e respeitar, ele que mede o grão na eira e o vinho no lagar, que vigia os moinhos e os gados, que impõe os padrões dos pesos e medidas e a forma de medir, que junta os homens para cavar a vinha ou pisar as uvas, que exigia o serviço da “carraria” para acompanhar a entrega das rendas no celeiro do senhor ou para enviar mensagens, o que faz as pedidas, que decide se o dízimo de bens deve ser pago antes ou depois de tirar a parte do senhor. Vem no Natal, na Páscoa, no começo da Quaresma, no S. Miguel, no S. João, na matança do porco, quando a marrã tem as ninhadas, as vacas os vitelos, as cabras as suas crias. Não admira que algumas vezes os caseiros percam a paciência e levantem a mão contra eles […]. A multiplicação dos seus poderes, e da sua capacidade económica, revela o desenvolvimento de uma categoria do campesinato que serve de instrumento à exploração senhorial mas tira ela própria partido da função que nesse domínio exerce.» (4).

Nunca se saberá quais foram os mordomos que, em nome dos respectivos senhores eclesiásticos (e também por/para sua própria conta) eram atentas sentinelas dos casais e caseiros na Arcelos de 1220. Nem quem eram as famílias que neles moravam e os trabalhavam. Nem a composição de cada um desses casais, nem a sua localização dentro da freguesia, nem a sua evolução, nem às mãos de quem foram parar. Será que as Inquirições de Afonso III (1258) e D. Dinis (1284) nos vão trazer mais informações e esclarecimentos?

Consultei, na redacção deste post, entre outras, as obras a seguir referidas.

Então, até breve!

(1) Iria GONÇALVES, 1989: O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa [pp. 169 e 170]. (2) Alberto SAMPAIO, 1979: As Vilas do Norte de Portugal. Lisboa: Veja [p. 67]; (3) André Evangelista MARQUES: O casal: uma unidade de organização social do espaço no Entre-Douro-e-Lima (906-1200). Medievalista online, n.º 4, 2008. Em http://www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA4; (4) José MATTOSO, 1985: Identificação de País. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, Vol. I – Oposição. Lisboa: Estampa (2.ª ed.) [p. 257].

Posted Março 14, 2011 by David F. Rodrigues in Uncategorized

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