MATO NAS INQUIRIÇÕES (VIII)   Leave a comment

Inquirições de 1220 (7)

Em 1220, os bens eclesiásticos em Arcelos (depois, Mato), eram senarias, quebradas e casais. Os dois primeiros (senarias e quebradas) pertenciam à igreja local e os últimos (casais), em número de seis, à Sé de Braga (2), à igreja e/ou mosteiro de cada uma das freguesias de Calvelo (1) e Gaifar (2,5), e à ordem religioso-militar do Templo (0,5). Falei das senarias e quebradas, no post anterior. Hoje e no próximo, dos casais.

No registo destes bens, certamente por se tratar de resumo, não se localiza cada um desses casais, nem as suas dimensões, nem a sua constituição, nem quem os habitava e/ou os trabalhava, nem as rendas, nem os mordomos que as recebiam e fiscalizavam.

Os dois casais de Braga pertenciam à Sé. Seriam, provavelmente, como referi no post anterior, resultantes das doações-testamentos que, segundo os documentos 526 e 546 (repetidos, respectivamente, pelos 786 e 794) do Liber Fidei Sanctæ Bracarensis Ecclesiæ, fizeram, respectivamente, os irmãos Mendo e Egas Gomes, em 1151, e Marinha Sesnandes, em 1158. Uns e outra, em 1220, já estariam falecidos. Por isso, a propriedade plena (raiz e usufruto) desses bens era já da Sé, em cumprimento, aliás, do lavrado nas respectivas cartas de testamento.

Quanto aos casais que, embora situados na freguesia de S. Lourenço de Arcelos, pertenciam a S. Pedro de Calvelo e a Santa Eulália de Gaifar, fariam parte do mosteiro ou igreja de cada uma destas freguesias. Há vários documentos no Liber Fidei onde se encontram referências ao «monasteriomosteiro» e à «ecclesiaigreja», em cada uma destas freguesias. Em relação a Sanctus Petrus de Calvelo, «monasterio» encontra-se, apenas, no documento 464, datável dos anos 1118 a 1127. Com «ecclesia», os documentos 470 (que 734 repete), de 1126, e 599, de 1164. Em relação a Sancte Eolalie de Gayfar, Gueifar, Galifar ou Gaifar, há cinco documentos, com «monasterio»: 460 (que 735 repete), de 1126, 318, de 1151, e 526 (que 786 repete), também de 1151; com «ecclesia», apenas dois: 209, de 1126, e 885, de 1219.

Poderá perguntar-se se, naqueles remotos tempos, em cada uma destas freguesias, havia lugar para, em simultâneo, um mosteiro e uma igreja. É possível que sim. É possível que não. Mas também pode ter acontecido que um mosteiro tenha passado a igreja e vice-versa. A primeira hipótese terá sido a evolução mais provável. Convém não esquecer, porém, que, in illo tempore, estas palavras também ocorrem como sinónimos. Analisar esta questão, com mais profundidade, relativamente a Calvelo e Gaifar, exigiria espaços que não cabem neste blogue. Aliás, a publicação destes posts não tem esse objectivo, mas sim revelar aspectos históricos do Mato, minha terra natal. Mas não deixarei de meter a mão na arca documental das vizinhas, quando julgar oportuno.

No célebre cartulário bracarense encontram-se ainda outros documentos relativos a estas freguesias, isoladamente ou ao lado de outras, vizinhas e afastadas. Merecem e devem, todos eles, ser estudados e criticamente divulgados. O desenvolvimento cultural dos moradores passa também pelo conhecimento crítico da história da sua terra. Sem bairrismos e paroquialismos, evidentemente. Nestas, como noutras coisas, também é preciso pensar global, para agir local. Se assim tivesse sido, mas ainda é tempo de ser, talvez se possa contrariar a desertificação das aldeias mais pequenas e mais afastadas dos centros mais populosos (ditos também urbanos), que os poderes centrais, centralizados e centralizadores (todos eles, seja qual for a sua natureza) têm vindo a promover, em vez de combater. Enfim…

Regresso aos casais que, situados na freguesia de Arcelos, eram património eclesiástico exterior, mas não propriamente alheio (Sé de Braga, igreja e/ou mosteiro de Calvelo e de Gaifar, ordem religioso-militar do Templo). E para dizer que o meio casal desta ordem deveria constituir, com o outro meio, além dos dois, da igreja e/ou mosteiro de Gaifar, um só casal, mesmo sabendo-se (como se verá) que podia ser constituído por unidades de exploração dispersas e de natureza diversa. Aquele meio casal do Templo teria resultado, certamente, de doação feita por algum cavaleiro (nobre ou vilão) àquela ordem, como dádiva ou em troca de protecção e alimento. Não faltam exemplos. Ou seria de algum que o recebeu como recompensa pela sua participação nas lutas da Reconquista? Ainda não encontrei provas que confirmem estas hipóteses. Não conheço documento nem referência que ateste a existência de mosteiro ou convento do Templo (ou qualquer outra ordem) em Arcelos, depois Mato.

Símbolo da Ordem

A ordem do Templo de Jerusalém ou dos Templários foi fundada, em 1120, pelo cavaleiro francês Hugo de Payns, natural de Montigny, a que se juntou um pequeno grupo de cavaleiros, na sequência da Primeira Cruzada (1098). Tinha como finalidades iniciais proteger de ladrões e bandidos os peregrinos de Jerusalém e defender a Terra Santa dos ataques dos muçulmanos. A sua regra foi escrita por Bernardo (depois santo), abade de Claraval, da ordem de Cister (beneditina). Os seguidores do Templo, para chegarem a monges, faziam votos de pobreza e castidade. O seu crescimento, em toda a Europa, foi surpreendentemente rápido, em termos religiosos, políticos e sobretudo económicos. Chegou cedo a Portugal, melhor, ao ainda Condado Portucalense. Repare-se, a propósito, no que escreve José Mattoso, na biografia de D. Afonso Henriques:

«Em Março de 1129, Afonso Henriques confirma a doação que D. Teresa, sua mãe, havia feito do castelo e do termo de Soure à Ordem Militar do Templo de Jerusalém, exactamente um ano antes. A “rainha”, juntamente com um grande conjunto de nobres, tinha também dado ou prometido à mesma ordem muitos outros bens, além de um domínio em Fonte Arcada (Penafiel), onde se viria a constituir uma comenda. O diploma de D. Teresa, cuja solenidade é reforçada pela confirmação de Afonso VII, feita em Zamora [1143], envolvia a “rainha” e alguns dos principais nobres do Condado Portucalense […] / Trata-se, na verdade, de um acto surpreendente pela sua precocidade, visto que, em Março de 1128, os Templários não tinham ainda sido aprovados como uma ordem religiosa [em 1129, no concílio provincial de Troyes], constituíam uma comunidade com pouco mais de uma dúzia de membros e eram desconhecidos na maior parte da Europa. Além disso, nunca ninguém tinha tido a ideia de criar um exército de monges nem um convento de soldados. O estado da vida religiosa opunha-se à profissão das armas. / Nada fazia esperar, portanto, que, quando Raymond Bernard [um dos companheiros de Hugo de Payns] chegou a Braga, e aí, perante a rainha D. Teresa, Fernão Peres de Trava e um grupo numeroso de senhores [muitos galegos e outros portucalenses], os tivesse convencido a oferecerem o seu apoio e os seus bens à estranha ordem de que fazia parte, e que depois tivesse conseguido em Zamora a confirmação de Afonso VII [rei de Leão]. A sua adesão representa, temos de admitir, um extraordinário voto de confiança numa experiência ousada, inovadora [Cruzadas] e que, naquele momento, não se imaginava ainda como especialmente vantajosa para a luta contra o Islão na fronteira portuguesa [Reconquista].» [2007, pp. 81 a 84. Adaptado.]

A propósito (e metendo a mão na arca das vizinhas), cabe referir que, segundo as inquirições de 1220, a freguesia de Calvelo era «cautum de Sancto Jacobo de Galliciacouto de Santiago da Galiza» (ou seja, da Sé de Santiago de Compostela), onde viviam «Lviij homines58 homens». Este é um dos poucos casos em que é referido o n.º de moradores da freguesia. A partir dele, é possível chegar ao número dos moradores de Calvelo, naquele tempo. Mas isto é pesquisa e trabalho que, aqui e agora, não me diz directamente respeito. Além disso, em Calvelo havia também «viij casaliaoito casais», que pertenciam ao mosteiro beneditino de «Ramdufi – Rendufe».

O mosteiro de Rendufe foi fundado por Egas Pais, rico-homem, isto é, da mais alta nobreza portucalense. Era senhor da torre de Penagate, situada a noroeste de Vila Verde, e tenente (governador) das Terras de Bouro e Penela. É o mesmo que, 1126, mais a esposa, Elvira Soares, doaram à Sé de Braga a «hereditate vel ecclesiaherdade ou igreja» que possuíam em Gaifar. A Elvira era filha de Soeiro Guterres e neta de Gueterre Cendonici, de quem recebera tal herdade ou igreja, segundo lavrado está na carta de testamento (documento 209) do Liber Fidei. Egas, por sua vez, seria filho de Paio Guterres, irmão de Soeiro Guterres, protector do mosteiro de S. Salvador da Torre. Assim sendo, Egas e Elvira seriam primos direitos, facto que estará na origem da excomunhão por incesto, aplicada pelo D. Geraldo [1096-1108 (depois também santo)], «durante uma cerimónia litúrgica presidida pelo próprio arcebispo na Sé de Braga, diante dos condes D. Henrique e D. Teresa.» Egas Pais era pai de três filhos – Gomizo ou Gomes, Egas e Godim, com apelido Viegas – que, identificados como tais, com ele confirmam, em 1120, a doação de Maior Mendes à Sé de Braga (documento 562 do Liber Fidei). Gomes Viegas foi governador da Terra de Penela e, em finais do século XII, «ainda as terras do Bouro eram governadas pelo neto [de Egas Pais], também chamado Gomes Viegas, filho de Egas Viegas.» Eis, pelo exemplo, como não era só o rei que transmitia o poder por herança.

Há no Liber Fidei documentos de Gaifar, onde aparece referida uma «villa Cendoni». Tenho lido que Cendão é topónimo que, por deturpação natural fonética e gráfica, não tem sido possível localizar. Pois, creio saber onde fica essa vila [grande propriedade rústica] ou, pelo menos, o que dela resta. A sua revelação ficará para depois. Fazê-lo agora seria meter, não uma, mas as duas mãos na arca documental das vizinhas. Vizinhas, sim senhor, porque, embora se leia que Cendão foi o primitivo nome de Gaifar, ele tem a muito ver com ambas elas…

Mas, afinal, o que era um casal, em 1220?

A resposta fica para o próximo post.

Até breve, então.

NOTA – Para não sobrecarregar o texto com referências bibliográficas, omiti as leituras de autores e obras consultadas. Eis, a seguir, os principais títulos (alguns reduzidos), além da edição crítica do Liber Fidei, indicada nos primeiros posts deste blogue, e Inquirições de D. Afonso II (Livro 1), em http://digitarq.dgarq.gov.pt/?ID=4182576.

Avelino de Jesus COSTA, 1979 (2.ª ed.): O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga (2 vols.). Braga: Irmandade de S. Bento da Porta Aberta.

José MATTOSO, 2007: D. Afonso Henriques. Lisboa: Tema e Debates; 1985: Identificação de um País […] (2 volos.). Lisboa: Estampa; 1985 (2.ª ed.): Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros […]. Lisboa: Guimarães Editores.

Alberto SAMPAIO, 1979: […]. As Vilas do Norte de Portugal. Lisboa: Vega.

Posted Fevereiro 19, 2011 by David F. Rodrigues in Uncategorized

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